O programa Zona II surgiu em 2021, pelas mãos de Maria Goucha e Wil Carvalho. Criado em parceria com o Clube de Criativos de Portugal, o projeto assume a missão de mostrar aos jovens da periferia de Lisboa o que é o mercado criativo, combinando a atribuição de bolsas de estudo com um plano de mentoria.
Neste segundo ano, o Zona II regressa com mais bolsas – distribuídas entre a ETIC, a Flag, a Lisbon Digital School, a EDIT, a Restart, a World Academy e a Academia CCP – e com o patrocínio oficial da Sumol.
As candidaturas estão abertas até dia 1 de junho, e tudo o que se pede é uma demonstração de criatividade. Basta escrever uma carta de motivação e assinar um projeto livre, que deverá ser um reflexo das qualidades do candidato – seja na forma de um texto, desenho, outdoor, música, poema, ideia publicitária, ilustração, fotografia, ou mesmo um TikTok.
Aproveitámos a ocasião para conversar com o Wil, fundador do projeto, que nos explicou melhor a história e a missão do Zona II.
Qual foi o ponto de partida para esta iniciativa?
O Zona II acontece um pouco pela minha experiência pessoal. Eu trabalhava numa loja mas tinha sempre a ideia de estar no sítio errado, de ter um potencial por cumprir. Fazia spots publicitários na minha cabeça, organizava eventos, o bichinho da comunicação estava ali presente, mas eu não conhecia os acessos. Percebi rapidamente que havia entraves, o networking era uma coisa distante, e ninguém explica a um miúdo periférico como é que se dá a volta a isso. Quando finalmente comecei a trabalhar no meio, apercebi-me de duas coisas. Primeiro, quase ninguém falava como eu, ninguém partilhava as minhas referências. E depois tive a realização de que eu não era uma exceção – se eu tinha chegado ali, haveria imensos miúdos com as mesmas capacidades, mas que nem olhavam para uma carreira no meio criativo como uma possibilidade. E há tanto talento, tantos miúdos a fazer bom conteúdo, seja no Instagram ou no TikTok, que podiam estar facilmente a trabalhar para marcas.
E a partir daí quais foram os passos para arrancar com o projeto?
Quando eu já tinha alguma moral no meio profissional, fui falar com o Clube de Criativos e disse-lhes que havia um blindspot no mercado. Qualquer briefing anuncia que quer chegar aos jovens, mas depois ninguém sabe o que isso implica. A mensagem que eu tentei passar foi a de que não basta abrir portas, porque há entraves estruturais. Pedir um portefólio ou uma licenciatura já exclui imensa gente. O trabalho teria de ser de base: é preciso ir a estes bairros e explicar os miúdos que podem converter os soft skills deles numa profissão. “Olha, escreves umas rimas, podes ser copywriter. Fazes graffiti? Podes ser ilustrador.” Depois de conseguir o apoio do Clube de Criativos, começámos a abordar as escolas que queríamos ter como instituições parceiras, e foi uma bola. No ano passado atribuímos 12 bolsas de estudo, este ano vamos conseguir subir até às 16.
No meio de todo esse processo terá havido surpresas e obstáculos, algumas dores de crescimento?
Uma das coisas de que me apercebi é que eu próprio já estou dentro da bolha. Já não chego da mesma forma aos miúdos da periferia, e isso obrigou-me a procurar outros canais, porque ninguém quer ouvir uma palestra de uma hora no auditório da escola. Na verdade, esse continua a ser o grande desafio, porque sinto que ainda não cheguei às pessoas a quem tinha de chegar – tanto àqueles miúdos que já fazem cenas e que só precisam que lhes abras umas portas, como ao miúdo que até curte videoclips mas que nem sonha que pode ser videomaker, que aquilo é uma profissão. Outra coisa que nos surpreendeu no primeiro ano foi a mentalidade self-made de alguns miúdos, que não querem trabalhar para ninguém – a prioridade deles é ganhar skills e fazerem a própria cena. Isso é fixe e é legítimo, claro, mas a aprendizagem continua a ser essencial. Mesmo que queiras fazer beats, tens tudo a ganhar com um curso de técnico de som na ETIC. É também aí que entra o nosso sistema de mentoria, com voluntários que podem acompanhar de forma mais personalizada o percurso criativo dos miúdos. Essa é uma opção logo no momento da candidatura.
A propósito das candidatura, como é que funciona o processo de recrutamento?
Quando começámos a discutir o projeto, havia uma tentação de quantificar as coisas – de pedir aos candidatos provas de carência económica, o IRS dos pais ou qualquer coisa assim. Eu acho que seria um erro, porque é muito mais complexo do que isso: eu nunca estive no limiar da pobreza, mas tive de trabalhar sempre para ajudar em casa, tive de pedir um empréstimo para conseguir fazer um estágio não-remunerado, e há todo um conjunto de dificuldades e microagressões que servem de obstáculos e vão muito além do que pode ser medido. Foi por isso que optámos por pedir apenas uma carta de intenções e um desafio criativo livre. A ideia é precisamente afastar outras exigências – não vou pedir a ninguém para responder a um briefing se nunca o fizeram antes na vida – e avaliar apenas o potencial bruto. É preciso sensibilidade, acima de tudo.
Quais são os objetivos do Zona II a médio e longo prazo?
Acima de tudo, é um caminho gradual. Gostávamos de manter isto de forma consistente, e com uma estrutura cada vez mais sólida – com uma calendarização regular, com garantias de bolsas e de patrocínios. Este ano contámos com a ajuda da SUMOL, e claro que isso expande as nossas possibilidades.
No Brasil há também um par de projetos em que nos inspirámos – a ESCOLA RUA e a PerifaLions – mas notas que os miúdos lá já têm outra consciência do que podem fazer, das possibilidades do meio criativo, e é a esse ponto que queremos chegar. Há um espaço vazio por ocupar, há muitos miúdos que não vão para a faculdade mas que querem alternativas aos cursos de formação profissional mais limitativos. Acho que nós podemos ajudar aí, mostrar aos miúdos que há opções. E depois, se tu tens um amigo que fez um destes cursos e até curtiu, é muito mais provável que vás atrás e te candidates também. É assim que acontecem as mudanças culturais.