Era um dos Halftime Shows mais antecipados em muitos anos. New Orleans acolheu a Super Bowl, e recebeu também o primeiro concerto de intervalo protagonizado por um rapper em nome próprio. Kendrick Lamar assinou um espetáculo de 15 minutos recheado de energia e storytelling, com aparições de Samuel L. Jackson, Serena Williams e DJ Mustard, e com o beef com Drake como pano de fundo (e também ao pescoço de Kendrick).
Sim, tocou “Not Like Us” – nem os processos em tribunal o demoveram – mas foi muito mais do que isso: um comentário abrangente sobre a trajetória de um artista negro nos Estados Unidos, acompanhado da reflexão sobre as contradições entre o ego e a self-doubt, um tema recorrente no trabalho de Lamar. Merecedor de todas as análises que se farão por estes dias, e de que nós não quisemos ficar fora. Vamos a um breakdown detalhado.
“The Game” e a Ilusão de Controlo
A abrir a performance, Kendrick Lamar surgiu num Buick Regal coupe, um carro dos anos 80 associado à street culture de Los Angeles. Foi um piscar de olho às suas origens em Compton – o modelo do carro faz parte da Black culture da West Coast, e embora seja associado aos street gangs de LA é também um símbolo de orgulho e emancipação – ao mesmo tempo que serviu de metáfora para o Sonho Americano. A promessa de mobilidade é inseparável dos mesmos instrumentos que perpetuam os sistemas de opressão.
Samuel L. Jackson apareceu então como “Uncle Sam”, subvertendo a representação clássica da América e interpretando a sua personagem em Django Unchained. Deixa o aviso a Kendrick: “You know the rules. Play the game”. É este o deal que os Estados Unidos têm para oferecer à população negra, e o pacto faustiano é ainda mais evidente no caso dos artistas e atletas: deixem que a indústria vos molde, que vos mercantilize e sugue os lucros do vosso génio, e em troca receberão dinheiro e fama.
O Palco
Prolongando a metáfora do Jogo, o palco assumiu a forma de um gigantesco comando de Playstation. Os players são controlados por forças e agentes externos, e até uma figura como Lamar – no topo da hierarquia, mais do que nunca – está vulnerável à pressão da indústria. Quando sobe a palco, deixa claro que escolhe “jogar o jogo” (e aqui, entre o triângulo e o stage design em forma de pátio de prisão, parece também haver uma referência a Squid Game). Não é sequer uma escolha, relembra-nos: mesmo reconhecendo as opressões sistémicas a que estão sujeitas, as comunidades marginalizadas têm de tentar navegar o jogo para sobreviver. Levantar o véu que esconde uma estrutura ideológica não chega para destruí-la.
Lamar vai saltando entre diferentes secções do palco, correspondentes aos símbolos do comando. Há uma progressão pelos níveis do jogo, um crescimento pessoal e profissional, e no desafio ao sistema há também um risco de silenciamento. Mas em que posição fica Kendrick, um artista cujo sucesso comercial é inseparável do seu conteúdo político e contestatário? Como é que pode entregar uma mensagem sem que esta se mercantilize, sem que o seu conteúdo revolucionário se transforme num produto?
A Setlist
A seleção de músicas conta esta história e dá-nos uma narrativa de Bildung. O rapaz de Compton salta para o mundo, alcança a fama e enfrenta os desafios do sucesso, confrontando-se com os limites do sistema que o alimentou.
A primeira secção aposta num triunfalismo agressivo. “DNA.” e “HUMBLE.” são hits de auto-empoderamento e black excellence: “power, poison, pain, joy”, tudo isto está contido na identidade afro-americana, e Kendrick flexa o seu domínio da indústria. À competição, mais do que nunca, resta manter-se humilde. À sua volta, em palco, pairam vampiricamente os bailarinos que representam a corporate America e a indústria de entretenimento. Já as enormes luzes vermelhas, evocativas de um ringue de boxe, anunciam uma batalha.
Dá-se então um shift dramático de energia. As luzes abatem, e Kendrick puxa do mais recente álbum GNX, com reflexões sobre traição, escrutínio público e dilemas morais. “Euphoria” fala-nos das tensões entre o sucesso e a liberdade artística, enquanto “Man at the Garden” referencia a história bíblica de Jesus e Judas para abordar as traições vindas dos mais próximos círculos de confiança. O tema constante é a forma como a indústria alimenta o crescimento de artistas negros, virando-se facilmente contra eles assim que se tornam demasiado outspoken e políticos.
O turning point seguinte ocorre quando SZA se junta a Kendrick para “Luther” e “All the Stars”. A presença de uma mulher dá-nos um olhar diferente sobre a experiência negra, e um contraponto aos beauty standards eurocêntricos. “Luther” é um tributo a Luther Vandross, cantor lendário que só alcançou o reconhecimento depois da morte, reforçando a importância de os artistas negros usufruírem materialmente do seu génio en vida, não sendo apenas glorificados postumamente. “All the Stars”, da banda sonora de Black Panther, aponta ao futuro: é um hino de afrofuturismo e black unity, mostrando um horizonte em que a cultura negra não é apenas alvo de exploração, mas sim celebrada nos seus próprios termos.
O clímax traz a resposta à grande pergunta. “Not Like Us” está mesmo na setlist, depois de muito teasing, e só a acusação de “certified pedophile” – o verso mais controverso – é deixada em silêncio. O público de New Orleans preenche a omissão. O domínio cultural é absoluto, e nem todos os processos legais podem abafar a mensagem.
O golpe de misericórdia dá-se com o cameo de Serena Williams a dançar um Crip Walk, move clássico de Comptom. Símbolo do domínio negro num desporto tradicionalmente branco, é também um último shot na direção de Drake, que manteve uma reconhecida obsessão pela tenista durante vários anos. Mas o momento é principalmente de solidariedade negra, de reconhecimento para com um exemplo de black feminine excellence, e de comunhão entre músicos e atletas negros sob a experiência partilhada da indústria do entretenimento.
Mensagens e Simbolismos
Há várias camadas contidas nestes 15 minutos que poderemos demorar dias a interpretar. O outfit de Kendrick em palco dá mais algumas pistas. O casaco varsity personalizado, em cabedal, é um design da britânica Martine Rose, com a palavra “Gloria” nas costas – uma referência à última faixa de GNX. Os jeans à boca de sino também não passaram despercebidos, com um corte Y2K nostálgico, e muito menos a chain com um “a” – o “A” menor de “Not Like Us” – , acompanhada pelo opulento diamante no chapéu.
Os bailarinos, vestidos com fatos de treino em vermelho, branco e azul, rearranjaram-se numa coreografia que formava a bandeira norte-americana, Kendrick ao centro, numa aparente representação das divisões do próprio país. Também relevante é que o vermelho e o azul são as mais reconhecidas gang colors de Los Angeles. Ao arranjarem-se na bandeira, parece haver uma sugestão de que os aspetos indesejáveis da cultura americana são também os mesmos que possibilitam o American Dream – a prosperidade da maior potência cultural do mundo assenta na segregação e na opressão.
Kendrick terminou num tom de celebração, debaixo de uma chuva de aplausos, e avisando que a luta não acabou. Mas a apoteose deixa no ar a pergunta: esta é sequer uma luta que possa ser ganha? A exposição deste Jogo perante 130 milhões de espetadores tornou um campo de futebol americano numa arena de batalha, mas a denúncia, e é o próprio Kendrick quem o reforça, corre um risco inevitável de ser absorvida pelo espetáculo. Na última música, quando faz uma victory lap com “TV Off” – um hino bouncy à boa moda West Coast – Lamar atira, quase como resposta, “yeah, somebody gotta do it”. E talvez seja verdade, mas só ele podia fazê-lo.