“A imagem do artista intocável mexeu comigo – ser visto assim feriu a minha alma, não é quem eu sou. A resposta que encontrei, em conversa com Deus, foi ser o mais humano possível.”
O Teto que chega ao estúdio em Lisboa, para fotografar o editorial, é um jovem baiano de 23 anos, desempoeirado e de vibe leve – mas é também um dos maiores nomes do rap brasileiro contemporâneo.
Apanhámo-lo no regresso a Portugal, onde cada visita lhe serve de bitola para medir o progresso na carreira. Na primeira passagem por cá, em 2021, aproveitou para gravar o verso de “Europa”, futuro hit com Mizzy Miles. Agora, vem apresentar MAIOR QUE O TEMPO, novo álbum que é em si um manifesto de dualidade – o disco divide-se em duas partes, entre as raízes no trap e a exploração de novas avenidas sonoras.
A revolução também é visual: cortou os caracóis e foi em busca de novas referências sartoriais, pôs o seu estilo streetwear clássico a caminhar para novas paragens, e é esse o ponto de partida para este shoot.


“As prévias eram [lives] no Instagram, a partir da intimidade do meu quarto. Tinham 100 ou 200 views, mas era o suficiente para alguém gravar e partilhar no YouTube — e aí chegavam aos 20 milhões… Criou-se [um buzz] em torno da minha música, marcou o meu início de carreira. Foi assim que surgiu o Teto das Prévias.”
“Eu não sabia nada de moda”, começa por confessar-nos. “Passei 18 anos da minha vida sem conhecer nomes de marcas, nem sabia o que era a Louis Vuitton. Mas gosto de estar noutros nichos, de levar a minha cultura e de criar diálogo — e a forma como me visto faz parte disso”. Foi assim, nas suas primeiras aventuras por São Paulo, que Felipe Matayoshi o convidou para protagonizar a campanha das PACE x ASICS GEL-QUANTUM 360 VII, uma “parada marcante” que acendeu o rastilho.
Há uma humildade que anda de mãos dadas com uma curiosidade abrangente. Ao longo da conversa, o Teto fala de progresso e de expansão. De conhecer pessoas ligadas à moda, mas também ao cinema e à arte; de compreender a indústria musical, de procurar referências e de “fazer um caminho”. E, para compreendermos tudo isto, temos de ir ao seu início. Temos de ir a Jacobina, no interior da Bahia, uma cidade “do tamanho de um bairro”. Foi aí que o pai o rodeou de música, o ensinou a tocar viola, e lhe mostrou que a música “é um processo de amor, muito antes de chegar aos ouvidos de alguém”.
Só que para um Gen Z’er, a distinção entre processo e produto final é porosa. O Teto começou a fazer trap na adolescência, a linguagem musical que tinha mais à mão, e a tocar as músicas em lives no Instagram. As famosas “prévias” eram captadas em screengrabs, partilhadas no YouTube e acumulavam milhões de visualizações. “Estava a perder dinheiro, mas abracei o buzz espontâneo. Até hoje uso a linguagem do Teto antigo, das prévias, e [agora] do Teto novo.”
Tudo fazia parte de um processo de descoberta, de entendimento – as palavras ressurgem uma e outra vez. Nada era planeado: se uma prévia funcionava, trabalhava-a melhor, “para a lançar para as pistas”. Mas o processo “prejudicou a minha perceção artística. Eu queria ter dado um pouco mais de atenção, um pouco mais de calma, mas era muita coisa nova ao mesmo tempo.”

“Quando tentei experimentar coisas novas, trazer influências de outros géneros que cresci a ouvir, percebi que o público não recebeu tão bem. Neste novo álbum, aprendi a lidar com isso: eu tenho várias versões, nunca vou conseguir ficar preso a um só nicho. Estava a prejudicar-me ao não explorar outros estilos e assuntos. Acabei de ser pai — quero falar, com abertura, sobre os desafios na família e na minha carreira.”


“Vivo num choque de realidades. A minha mãe e o meu pai ainda vivem no interior da Bahia. Vou lá pelo menos uma vez por mês — para me reconetar, voltar a casa, lembrar-me do que tudo aquilo significa para mim. Não quero perder a simplicidade. Quero que a minha filha cresça entre essa realidade e o mundo inteiro que pode conquistar.”

Quando tentou abrandar e explorar novos caminhos – pelo rap alternativo ou pelo afrobeats – o público não o recebeu tão bem. Assume o medo que sentiu, mas também percebeu que a mudança era inevitável. “Tinha acabado de ser pai, queria falar disso, dos desafios da carreira,” com uma abertura e uma vulnerabilidade que as vestes de trapper já não lhe permitiam. Alguns dos problemas de um milionário também eram, afinal, os problemas de qualquer pessoa. “Senti demais essa ideia do intocável, essa imagem prejudicou a minha alma e espírito, prejudicou o meu ser. A resposta que eu encontrei, a falar com Deus, foi que tenho de ser o mais humano possível.”
E a resposta está também no novo álbum, resultado de um processo criativo inteiramente diferente, que contrapôs ao registo de imediatismo online que lhe serviu de trampolim. “Foi como escrever um livro, a primeira vez em que consegui estruturar as coisas com princípio, meio e fim”. O tempo das ideias avulsas deu lugar à maturidade, a um horror à estagnação, e ao querer “construir um legado”. Mais do que isso: “um império, para ajudar as pessoas de onde vim”.
É esta a outra dualidade que atravessa a conversa: a viragem caseira, compreensível em quem tão depressa alcançou uma projeção global. Neste álbum recupera a herança da Bahia – “o axé, pagodão, forró, brega, o que eu cresci a ouvir, que está presente na minha personalidade”. Quando o mundo se expande tão subitamente, regressamos às categorias mais elementares: ao espaço e ao tempo. “É daí o título do álbum, quero ressignificar o tempo. Levo muito a sério a mistura entre épocas. Se eu consigo fazer uma colaboração com o Leo Santana ou o Seu Jorge, porque é que não faria?” E, no que toca ao espaço, Jacobina, a sua pequena terra natal, surge uma e outra vez: fala-nos da simplicidade, do pé no chão, do respeito ao próximo. “Os meus pais ainda moram no interior da Bahia É uma oportunidade de reconexão, de me relembrar o que aquilo significa para mim. Não quero perder a simplicidade. Quero que a minha filha cresça entre essa realidade e o mundo inteiro que ela pode conquistar.”
“Não sei onde vou estar daqui a 10 anos, falava sobre isso há pouco com o Mizzy [Miles]. Há quatro anos, quando fizemos a ‘Europa’, as nossas vidas eram completamente diferentes. Sempre que estamos juntos, trazemos as nossas conquistas para a mesa, celebramos e refletimos sobre como a vida mudou. E mudou muito.”
Portugal, um país 20 vezes mais pequeno do que o seu, parece ironicamente representar o pólo oposto da internacionalização. “Sempre que venho a Portugal parece a primeira vez, é muito diferente e ando na rua como quero.” Marca o ponto da sua carreira: foi aqui que fez alguns dos primeiros concertos, quando as restrições da pandemia começaram a relaxar. “Portugal amadureceu-me, aprendo sempre aqui. Há uma conexão com a cultura, com a moda. Quando cá vim [a primeira vez] vivi um banho de realidade.” As diferenças culturais estendem-se ao tratamento dos fãs: “os brasileiros são mais afoitos, aqui têm mais cautela.”
Essa primeira vinda a Portugal serviu também para consolidar o link-up que define a sua relação com o país. “Eu dei os concertos e ia-me embora, mas o Mizzy veio ter comigo com uma proposta: ficar mais uns dias e gravar uma música. [A “Europa”] só tinha um verso do Télio, na altura. Eu gravei a minha parte e a música ficou um ano parada. Voltei a Portugal passado esse tempo para gravar o videoclip e, no dia anterior, mudei completamente a minha sixteen. Foi muito foda, uma conexão muito importante e que me permitiu posicionar-me no mercado aqui.”
E é aqui que entra a unidade de medida. Parece desarmado quando o impelimos a pensar no futuro — quando perguntamos se se imagina mais na Bahia ou em Miami — mas reflete: “Há 4 anos, quando fizemos a ‘Europa’, a nossa vida era completamente diferente. Eu e o Mizzy metemos sempre as nossas conquistas na mesa e comemoramos juntos. E a vida mudou muito [nesse período]. Fui pai, a minha carreira cresceu, mudei de casa, consegui passar mais tempo com a minha família, cuidar de mim e da minha saúde.”


Entrevista: Nuno Cerqueira
Fotografia: Pedro Leote
Styling: Gabriel Bandeira
Vídeo: Guilherme Becker
Teto vestido com:
Constança Entrudo; Ernest W. Baker; Ihanny Luquessa;
M.Plateau; Wide Shades; Ylang Ravel

