Rap em Portugal: retrospetiva da década 2010-2019

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Quando nos propusemos a fazer uma retrospetiva do que foi o hip hop nacional na última década, defrontámo-nos com uma questão imediata – o formato. A opção foi por uma lista, correspondente a um disco e um single por cada ano, entre 2010 e 2019. Ao mesmo tempo, será consensual notar que a produção musical no nosso país viveu, durante esse período, momentos de grande fulgor, diversificando-se, esbatendo fronteiras de género, internacionalizando-se; de forma especialmente gratificante, assistimos a música de quadrantes outrora marginalizados a conquistar uma plataforma há muito merecida. Os constrangimentos que nos impusemos nunca permitiriam pintar um retrato adequado de tamanha heterogeneidade – que forma, ainda assim, uma só constelação, unindo Apollo G a David Bruno, Nenny a LON3R JOHNY. O que procuramos ressalvar é, portanto, que a lista que se segue nunca poderá ser lida como exaustiva, e vale também pelo que nela não está. Não nos guiámos sequer por um único critério condutor: algumas destas músicas terão batido recordes de views, outras terão tido mais impacto entre heads; algumas escancararam as portas de carreiras emergentes, outras serviram de crepúsculo para nomes firmados; alguns dos álbuns escolhidos tornar-se-ão clássicos intemporais, enquanto outros se destacaram por capturarem um zeitgeist específico; e, não menos provável, muitas destas escolhas serão, simplesmente, um reflexo dos meios em que nos movemos, das festas a que fomos, e do nosso gosto pessoal. Enquanto retrospetiva, conta uma história – mas nunca uma história definitiva, que pudesse dispensar as muitas outras que estão por contar.

Apesar dos caveats introdutórios, há ainda assim um arco narrativo que nos parece inegável: ao longo destes dez anos, o hip hop português estabeleceu novas coordenadas, aproveitou os bons ventos que vinham de fora para recuperar a saúde, e encontrou-se a si mesmo. Regressando a 2010, encontramos um cenário muito diferente.

O filósofo italiano Antonio Gramsci definiu um período de crise como “o momento em que o velho mundo está a morrer, e o novo tarda em nascer”. A década começa assim, órfã dos seus maiores nomes – pensemos em como Valete e Sam the Kid, até então os grandes embaixadores do rap português, iniciavam exílios artísticos autimpostos. Muito do que de mais interessante e subversivo se fazia circulava em fóruns de internet, sem um mercado pelo qual se canalizar. A música do ano chega, sem surpresa, pelas mãos de veteranos: Valete juntava-se aos Mind da Gap, numa faixa apropriadamente defensiva que começa com a insistência de que “o hip hop não está morto” e ironiza sobre “parece[r] que o hip hop já passou de moda”. Como as coisas mudam. “Não Pára” tornou-se um hino improvável, com Presto a recuperar a forma de outros tempos e o rapper de Serviço Público a trazer-nos uma das suas últimas sixteens clássicas.

Se o rap português andava pelas ruas da amargura, havia quem não precisasse de palavras para reanimar o hip hop. Orelha Negra, disco em nome próprio do supergrupo que dominaria as charts nacionais na primeira metade da década, colheu os elogios da crítica generalizada. Francisco Rebelo, João Gomes, Sam the Kid, Fred e Dj Cruzfader cruzavam a cultura do diggin’ por samples de funk e soul com uma vincada identidade portuguesa, materializando um clássico imediato – os atuais valores de revenda da edição em vinil que o digam.

Um ano volvido, os mesmos Orelha Negra traziam-nos uma mixtape – a partir dos temas instrumentais editados no álbum, surgiam agora remisturas, novas roupagens e, crucialmente, rimas. Sobre “M.I.R.I.A.M.”, Valete fazia desfilar “A Melhor Rima de Sempre”, o tema que escolhemos para 2011.

Um documento histórico – equiparável apenas a “Retrospectiva de um Amor Profundo”, de Sam the Kid, e a “Hall of Fame”, do próprio Valete -, encontra o rapper de origem santomense a regressar a meados dos anos 90, quando alguns dos atores que figuram nesta lista não seriam sequer nascidos. Do Johnny Guitar e dos programas de José Mariño até ao cruzar de caminhos com Sam the Kid e, principalmente, com Adamastor (com quem, juntamente com Bónus, formaria o Canal 115), os dez minutos de música funcionam como janela para um mundo que nos parece tão distante, mas do qual somos indelevelmente herdeiros. “A Melhor Rima de Sempre” é Valete no seu melhor – reunindo o talento e a paixão crua que lhe mereceram os seguidores que acumulou ao longo dos anos, mas evitando a preachiness em que várias vezes acabou por cair. Tem, ainda, algo que a distingue definitivamente de “Hall of Fame”: uma dimensão pessoal, manifesta no sentido tributo a Adamastor, e no apelo ao regresso do seu compagnon de route aos microfones. Só que nas entrelinhas de cada verso encontramos um documento de um movimento cultural consumido pela melancolia – um hip hop onde imperava um apetite nostálgico por uma “era dourada” que impedia qualquer passo em frente.

A escolha do álbum de 2011 não foi complicada – Árvore Kriminal, de Halloween, confirmava o talento singular que nos fora apresentado com Projecto Mary Witch. A falta de competição é, contudo, sintomática do marasmo em que caíra o rap português: Árvore Kriminal não é sequer o disco mais bem sucedido do rapper de Odivelas – vinca com sucesso a roughness estilística de Allen, sem par no panorama nacional, mas está ainda longe dos voos que o rapper alcançaria com Híbrido, onde o génio dos versos e dos flows encontraria o aprimoramento técnico e a aventura pelo formato de canção. Dito isto, temas como “Drunfos” e “Um Jardim à Beira-Mar” são clássicos incontestáveis.

O ano de 2012 afina pelo mesmo diapasão dos dois anos anteriores, dominado novamente pela veterania – os Mind da Gap faziam-nos então sentir borboletas – e por lançamentos sólidos mas menores. No meio da desídia, saía O Revólver Entre as Flores, um disco de anacronismos. Keso estava então na casa dos vinte, mas era um nome da velha escola portuense – sob o nome de KS Xaval, editara já um lançamento de autor com tenros 16 anos; Revólver, o seu antecipado segundo álbum, fora gravado entre 2006 e 2009, mas ficara então na gaveta com o encerramento da Matarroa. Que nem uma barra do disco soe datada é, portanto, testemunho de como Marco Ferreira sempre se moveu num terreno próprio.

Parte do segredo passará por um certo holismo artístico: Keso é, além de rapper, um produtor de mão cheia, o que ajuda a explicar a coerência interna do álbum. A sua escola de beatmaking é sui generis, principalmente no contexto português – contra o backdrop Sam the Kid-esco do chopping, não há no disco grande esforço para flippar samples até se tornarem irreconhecíveis; os loops surgem naturalmente, acolhem riffs orelhudos, e deixam o jovem portuense (à época radicado em Lisboa) expressar o seu talento – que não é, de facto, pouco. Keso rima, abraçando uma clara influência nortenha a que junta um humor sardónico muito próprio, e com o mesmo à vontade canta, e acima de tudo escreve boas canções, algo tão raro hoje como era em 2012. Muito por feitio, Keso permanece um outsider, mas a década é tão dele como de qualquer outro nesta lista.

A música que escolhemos para 2012 está, curiosamente, nos antípodas de Revólver Entre as Flores. Um sucesso comercial, mais do que um achievement artístico, “Sexta-Feira” de Boss AC ganhou contornos de “meme” (talvez tenhamos de recuar a “Nadar” dos Black Company para encontrar um paralelo), serviu de banda sonora para campanhas de hipermercados, e encontrou um público dos oito aos oitenta. Em comum com Keso terá, ainda assim, um caráter anacrónico: AC é o veterano por excelência, que já em “95 elev[ava] o flow para outro nível”, e que regressava então para capturar num refrão orelhudo as frustrações de uma geração que chegava ao mercado de trabalho sob um Portugal intervencionado. “Sexta-Feira” é um leve e despretensioso desabafo político, mas é principalmente um documento da persistência do talento de Ângelo César. É, além disso, o último resquício de uma época em que só fenómenos episódicos permitiam que o hip hop penetrasse o mainstream.

A música escolhida para 2013 nasce de mais uma mixtape de Orelha Negra, o que começa a não parecer coincidência. “Solteiro” é um incontestável clássico, com Roulet – homem da Enchufada até mais ligado ao kuduro – a assinar uma tremenda remistura, de coordenadas contemporâneas mas dissociada de estéticas mais localizadas, complementada pelo refrão de Heber. O vídeo acumula, hoje, mais de treze milhões de visualizações, mas com um crescimento sustentado que espelha a expansão comercial do hip hop – só ao fim de três anos passou a barreira dos cinco milhões, o que à data eram até números ímpares. Haverá diferentes e complementares explicações para tal momento de viragem, mas qualquer uma terá de se confrontar com o talento de Regula e Sam the Kid, e em especial com o reavivar de uma das parcerias mais bem sucedidas do rap português – as colaborações casuais entre os dois são responsáveis por um impressionante rácio de faixas clássicas.

Será também inegável o impacto, por si só, de uma sixteen de Sam the Kid. Esta não foi, objetivamente, a década de Samuel Mira: sem registos em nome próprio, o já quarentão refugiou-se atrás das máquinas, em Orelha Negra, e mais tarde assumiu um papel de produção executiva, lançando novos talentos e só pontualmente assumindo o microfone. Ao mesmo tempo, Sam nunca esteve verdadeiramente ausente – os versos ocasionais serviam apenas para alimentar o mito que o rodeia, o poder patriarcal que ainda detém sobre o rap português. A bitola estabelecida pelo homem de Chelas continua a ser o espetro que paira sobre cada miúdo que escrevinha umas rimas em “ar” no caderno da escola (mesmo que não o saibam), mas não pesa menos sobre cada rapper calejado que entra em estúdio.

Já Regula, por contraste, instalava-se definitivamente ao volante do rap português, aproveitando uma mudança de ventos. Outrora Bellini, os seus primeiros registos haviam sido, na década anterior, recebidos com boa dose de escárnio – sob a hegemonia obsessiva do rap dito “consciente”, linhas como “let’s make love and brincadeiras” pareciam francamente inadequadas, principalmente ao lado de storytellings dedicados ao assassínio de presidentes americanos. O talento, contudo – além de uma proficiência técnica rara – já lá estava, confirmado pelas mixtapes subsequentes. Bastou a mudança de paradigma operada no começo da década para que o repertório temático do rapper do Catujal deixasse de ser olhado com sobranceria, e para que os seus prodigiosos flows e métricas recebessem as devidas vénias.

Regula está na faixa e no disco do ano: Gancho é o encontro da mestria técnica com um carisma sem par no panorama português, um registo de um artista profundamente confortável na sua pele, desde a catarse de “Berço d’Ouro” à ubíqua “Casanova”. Importa notar, contudo, que se Gancho é indiscutível, é-o num cenário bem mais animador do que em anos anteriores, rodeado de lançamentos interessantes – nomes como Dillaz e Kappa Jotta começavam a despontar, NGA e Blasph assinavam registos sólidos, e Mike El Nite terminava o ano com “Mambo Nº 1”, tema escrito a duas mãos com um tal de Profjam.

Depois da explosão, 2014 revelou-se um ano de continuidade. Na ausência de nomes de “primeira liga” – com toda a subjetividade que o termo implica – e ainda sem que os talentos emergentes se tivessem cristalizado em certezas, assistimos a um consistente gotejar de lançamentos. Bispo estreava-se em nome próprio, tal como os GROGnation, já abençoados por Sam the Kid atrás da MPC; os Corona apresentavam a sua refinada matrioska de referências ao Grande Porto e à cultura de fato de treino de domingo; e NGA, com King, assinava a sua obra-prima, o ponto mais alto de uma carreira construída na base do suor. A nossa escolha para disco do ano recaiu, no entanto, sobre um lançamento que também coroou uma insuspeitamente longa carreira.

Capicua contabilizará, nos dias que correm, cerca de duas décadas de rap – que se estendem desde as SYZYGY e o circuito underground portuense, e incluem o egotrippin’ de Capicua Goes Preemo, com o selo da Horizontal. Pelo caminho, consolidou um registo próprio, uma forma límpida e engagé de rimar, que lhe mereceu uma ascensão progressiva pelos círculos do rap português. De forma não menos relevante, quebrou um “glass ceiling” – que se pode tentar apagar com universalismos, mas será sempre digno de nota perante a evidência de que o rap, e em especial o rap português, continua a ser um meio decididamente masculino.

Sereia Louca é o momento de maturidade artística. Sobre instrumentais de luxo, Capicua faz desfilar canções inspiradas e heterogéneas – da tão sociológica como sentida “Mulher do Cacilheiro” à introspeção de “Síndrome de Peter Pan”, sem esquecer a omnipresente “Vayorken” – e irrompe definitivamente pelo mainstream. Será legítimo, aqui, motivar uma reflexão: não retirando qualquer mérito à ascensão de Ana Matos Fernandes, indiscutivelmente assente no seu talento, não terá esse “tecto de vidro” sido sempre mais alto para mulheres que fizessem rap partindo de outras perspetivas, e, crucialmente, de outros backgrounds demográficos? Conseguimos imaginar uma história semelhante que tenha uma mulher negra e periférica como protagonista? Se a resposta é óbvia, é também por isso que Capicua surge como uma das figuras da década: a rapper nunca alinhou pelo diapasão do feminismo liberal pelo qual foi frequentemente cooptada, sujou as mãos em projetos sociais (caso do OUPA!), usou a sua plataforma mediática para deitar um foco sobre quem não o tem, e esteve sempre tão confortável a partilhar palcos com Ana Bacalhau como com Eva Rapdiva.

Haverá pouco em comum entre Capicua e Dillaz, mas há algo que une o sucesso da portuense ao homem da Madorna. Ambos se destacam por uma consistente competência na forma de rimar, uma abordagem deliberada que passa por remover a maioria dos escolhos do caminho do ouvinte, sem com isso comprometerem uma identidade própria, e que lhes permitiu chegar a públicos outrora inacessíveis. “Paga pra ver” é disso exemplo paradigmático, e é a nossa música do ano de 2014.

Saída do EP Cria Actividade, assinado a meias com Spliff, o breakthrough de Dillaz assenta numa estrutura simples, com um beat que, sem soar datado, poderia ter saído de qualquer período das últimas duas décadas. Ao longo de três minutos, o rapper da Madorna encadeia rimas cruas e diretas, com um flow que se viria a tornar muitíssimo caraterístico. Esse “stripping down” estilístico é a chave do seu sucesso – Dillaz, e mais tarde Piruka, representam um corretivo ao paradigma de que Regula é cabeça maior, uma reação de ouvintes sedentos por “realness”, por uma ideia de autenticidade indissociável do “straight talking”. O próprio Dillaz, note-se, não tem disto qualquer culpa – a colaboração com Regula, que viria a concretizar-se uns anos mais tarde, deixa-o claro. No seu repertório, o egotrip sempre conviveu bem com a reportagem exaustiva dos problemas sociais que assolam o meio de onde vem – e, nos seus melhores momentos, Dillaz navega com sucesso a complicada triangulação que se exige a quem quer escrever música de cariz político que não se resuma a doutrinação. Ainda assim, está inegavelmente patente na receção ao seu trabalho um desejo nostálgico por esse paradigma “consciente”.

A caraterização algo brusca que se fez até aqui do rap português corre o risco de apagar uma heterogeneidade que sempre esteve presente, em maior ou menor grau. Paralelamente à duvidosa dicotomia underground/mainstream que permeou toda a discussão sobre rap ao longo da primeira década do milénio, havia quem reclamasse para si um posicionamento “mais ao lado”. Formada precisamente na viragem do século, a Matarroa albergou projetos de quadrantes muito diferentes, mas ficará para sempre associada à expressão nacional do “indie rap”. Os Matozoo, e mais tarde o Clã da Matarroa e Nerve, reclamavam para si a herança de uma escola novaiorquina estabelecida pelos Company Flow de El-P, posteriormente cristalizada na Def Jux, e que se pautava não por uma recusa da linhagem histórica do hip hop, que carregavam orgulhosamente, mas por não se permitirem vê-la como um cânone ossificado, com ditames limitativos. Apesar de uma mão cheia de discos de culto, a Matarroa viria a fechar portas no final da década – ainda antes de cumprir a sua inside joke de resistir até 2014.

Se há caso onde a expressão “estar à frente do tempo” é bem empregue, será certamente este. A expansão comercial, e de horizontes, da última década ofereceu uma plataforma e um mercado ao talento “left-field” que os dez anos anteriores haviam reprimido. A Monster Jinx será disso um ótimo exemplo, dando por si subitamente numa posição privilegiada para colher os frutos do ecleticismo e da diversidade estilística que vários dos seus membros haviam cultivado. O caso mais emblemático, contudo – a derradeira “revenge of the nerds” – é aquele que escolhemos para álbum do ano: ‘Trabalho & Conhaque’ ou ‘A Vida Não Presta & Ninguém Merece A Tua Confiança’, de Nerve.

Num dos primeiros concertos de apresentação do disco, Nerve terá perguntado a uma casa cheia “onde é que vocês estavam há dez anos?” Haveria aqui mais perplexidade do que amargura. Em 2008, Eu Não das Palavras Troco a Ordem caíra como uma bomba no rap português – a referida herança alternativa encontrava o primor técnico e uma capacidade interpretativa pouco vista em Portugal, entre instrumentais venturosos mas ancorados numa estética decididamente hip hop. O problema, claro, é que por “rap português” se entendia aqui pouco mais do que um fórum online e dois ou três blogs. Sete anos volvidos, ‘Trabalho & Conhaque’ revelava um Nerve fundamentalmente igual a si mesmo – certamente empedernido pela vida, sem uma candura inocente presente nos interstícios do primeiro registo, e concedendo à sua música a progressão material proporcionada pelo tempo; mas intocado pelas mais significativas alterações no panorama do hip hop. A ironia, claro, é que esse panorama revelou-se-lhe absurdamente benéfico – se Nerve estava no mesmo sítio, os miúdos órfãos do indie haviam-se movido na sua direção, com o hip hop agora pronto a ombrear com o mais sorumbático shoegaze no cartaz de um qualquer Primavera Sound.

Esse mesmo Primavera Sound viria a acolher, em 2019, Allen Halloween. Essencial nesta narrativa é precisamente compreender como não foram só rappers com o perfil de Nerve a beneficiar de acolhimento no meio de uma intelligentsia cultural – a demografia que, em 2006, olharia condescendentemente para um miúdo a tocar “Dia de Um Dread de 16 Anos” no seu Nokia XpressMusic é a mesma que viria a tornar Híbrido, quase dez anos volvidos, num consenso da crítica.

“Bandido Velho”, single do disco, é a nossa escolha para música de 2015, enquanto encapsulação do percurso de Halloween. O olhar sobre o passado combina o arrependimento com a nostalgia (em “Marmita Boy”, outro ponto alto do álbum, revela-nos que “a vontade que a mim me dá é voltar para lá”). Aponta, além disso, à crescente religiosidade que culminaria, há alguns meses, no término da sua carreira. Allen canta a desesperança que simultaneamente lhe permite a aceitação – perante a perfeição de Cristo, que hipótese tem ele? – e expressa uma vã fé de que o seu filho evite os mesmos caminhos. É um triunfo a todos os níveis, ancorado na qualidade de produção de que nunca desfrutara, e que carrega a beleza dissonante da voz de Halloween. “’Quem não arrisca, não petisca’, ya, é verdade / Mas não há melhor petisco do que a liberdade” permanecerá como um dos versos da década.

Em 2016, começava a consolidar-se um elenco de nomes que dominariam o que da década restava, e que se mantêm até hoje na linha da frente do hip hop nacional. Lançado no ano anterior, fora negado a The Free Food Tape um impacto imediato – Slow J era um perfeito desconhecido -, mas o EP vinha acumulando gradualmente a atenção do público e da crítica. Profjam assinava Mixtakes, o registo da confirmação, explorando uma multiplicidade de flows sobre instrumentais com bpm’s mais clássicas. Keso, a quem esta retrospetiva já teceu as merecidas loas, regressava de Londres com KSX2016, um documento da emigração forçada e de amor à comunidade que o viu crescer, e que seria igualmente merecedor do rótulo de disco do ano. A nossa escolha, no entanto, recai para sul do país.

O Dread Que Matou Golias é o anunciado primeiro capítulo da trilogia de Holly Hood, protégé de Regula e talento maior da Superbad. O título transparece a intenção parricida: Holly estabelecera o seu nome através de participações nas mixtapes e álbuns do barbeiro mais renomado do Catujal, mas continuava um segredo bem guardado, e chegava a hora da confirmação. A missão é inegavelmente bem sucedida: ao longo de apenas sete faixas, o veterano newcomer (o oxímoro não é acidental) desfila skill – técnica, flows, punchlines – e, acima de tudo, cria músicas consistentes.

As coordenadas estéticas do álbum apontam a horizontes americanos, o que muito fica a dever ao talento de Here’s Johnny. Johnny, nome com o qual começou a trilhar caminho na produção, e que serviu de assinatura ao instrumental de “Baza Correr com o Paulo Bento”, é corresponsável pelo achievement que o disco se revela, monopolizando os créditos de produção. É, além disso, o produtor da década. A sua proficiência técnica está aqui em evidência plena, desde os drums e os 808’s com uma força sem paralelo em Portugal, ao sampling enquanto recurso ao qual não é subserviente, complementados ainda pelos detalhes que compõem densíssimas paisagens sonoras. Adicionalmente, Johnny tem mão de alfaiate, uma capacidade ímpar de compreender as necessidades de cada rapper, de se lhes subtrair sem comprometer o seu próprio traço. Tal estava já claro nas produções para Regula, e nos instrumentais com que foi abençoando múltiplos rappers em anos recentes, mas em lado nenhum está em evidência como na parceria com Holly Hood.

O parricídio, no final de contas não se dá – nem seria necessário. Holly Hood é um rapper diferente de Regula, com quem partilha pouco mais do que as referências e o virtuosismo técnico; de resto, onde Regula é effortless, Holly é metódico, por vezes excessivamente. Quando, em “Panorama”, baixa finalmente a guarda e revela a sua vulnerabilidade para homenagear o amigo Short Size, traz-nos uma das melhores faixas que a década nos deu, tragicamente “slept on”.

Holly afirmou-se como um dos nomes a lutar pela hegemonia do rap nacional, e do seu lado tem uma capacidade comprovada de assinar um consistente registo de longa duração. Os últimos anos da década ficam também marcados pelo seu beef com Piruka, que representa a tendência oposta – o sucesso do rapper da Madorna assenta na “youtubização” da música, e o single que escolhemos para 2016 é precisamente um fenómeno de views, à época sem comparação.

“Ca Bu Fla Ma Nau” constituiu uma ultrapassagem pela direita a todos os agentes do rap português. Surgido do nada, Piruka aparecia como um fenómeno inexplicável, e o single com a participação de Mota Jr dinamitava todos os recordes de visualizações: 100 mil em menos de 24 horas, quase um milhão na primeira semana, e finalmente a barreira da dezena de milhões quebrada – Valete perguntaria “dez milhões de views, mas quem é que visualiza?”, evidência do desconforto provocado.

Piruka mantém-se até hoje uma figura controversa, mas difícil será negar-lhe a sua competência, o sentido de oportunidade, a ética de trabalho, o êxito sustentado, e um lugar na história do que foi o rap nesta década.

Se Piruka escancarou a porta, foram os Wet Bed Gang quem ocupou a casa. O hype do grupo da Vialonga – formado por Gson, Zara G, Kroa, e Zizzy – já borbulhava há algum tempo. “Não Tens Visto”, em 2016, fora o breakthrough: três milhões de views acumuladas num ano não permitiam a indiferença de ninguém, com os flows do “miúdo” Zara G, e principalmente o talento astronómico de Gson, a capturarem transversalmente headphones e pistas de discotecas.

O novo ano trazia a confirmação. Os “filhos do Rossi” juntavam em EP homónimo alguns bangers já conhecidos com material inédito – sem grande coerência interna, mas nunca foi a isso que se propuseram -, com uma sofreguidão nas rimas que se traduzia numa OPA ao panorama musical português. O ethos é o do egotrip, não fosse uma parte da sua escola a do rap de batalha, mas a versatilidade e a multiplicidade de influências (o termo “afrotrap” surge persistentemente) que carateriza o coletivo expõe também um certo esgotamento das categorias que tradicionalmente empregávamos para falar de rap.

O tema que escolhemos como música do ano é “Aleluia”, lançado na esteira do EP. Exemplo paradigmático de como os Wet Bed Gang são mais do que a soma das suas partes, revelou-se sucesso comercial e demonstração de skill em partes iguais, contando ainda com a produção de Charlie Beats – figura que se revelaria matricial no resto da década. Há, contudo, uma mão cheia de outros hits com igual claim a figurarem nesta lista, evidência clara da hegemonia que o grupo conquistou em tão pouco tempo: no mesmo ano saíra já “Não Sinto”, incluída em Filhos do Rossi; o single “Bairro”, lançado no ano passado, sobre um beat de Lhast; e o megahit “Devia Ir”, de 2018, um êxito estratosférico sem comparação no panorama nacional.

Parte do sucesso da “Wet” prende-se com um sentido de colectivo, reforçado por uma comunidade que vai além da música – isso mesmo fica evidente na relutância dos elementos em aparecerem nos media a título individual. É impossível, no entanto, não destacar Gson, um portento que tomou de assalto o rap nacional. Gerson Costa ombreia na escrita com qualquer um dos seus contemporâneos: tem técnica, métricas arrojadas e esquemas rimáticos únicos, e nem no clássico critério de punchliner fica aquém das expetativas. Já Blasph vaticinava, no entanto, que “boas linhas não chegam, boy, aprende a dizê-las” – e Gson nem precisou de fazer o trabalho de casa, porque é naturalmente um dínamo de presença em frente ao microfone, dono de um registo vocal e interpretativo único, que se aventura confortavelmente a cantar, movendo-se entre géneros e influências. De nenhuma forma diminui o talento que o rodeia notar a crescente antecipação por um registo a solo.

Uma das mais celebradas sixteens de Gson surge em “Pagar As Contas”, faixa que figura no álbum de estreia de Slow J – a nossa escolha para registo discográfico do ano. The Art of Slowing Down era o aguardado sucessor de The Free Food Tape, depois de dois anos em que o nome de João Coelho se consolidara como um dos mais consensuais talentos emergentes. Durante o interregno, o setubalense lançara ainda “Comida”, empreendimento de 100 barras sobre um loop de “Canção de Embalar”, de Zeca Afonso; contudo, a maturidade da sua estreia confirmava o óbvio: as suas principais valências não eram, nem nunca seriam, enquanto rapper. O registo de Slow J, ainda que indelevelmente ancorado no processo formativo que o hip hop lhe proporcionou, prospera num espaço próprio que cavou para si.

The Art of Slowing Down abre, significativamente, com o músico à guitarra elétrica, justificando porque é que o espaço que procurava herdar era tanto o de um Valete como, por admissão própria, o de Rui Veloso. O rap estava lá – na voz de João Coelho, mas também nas de Nerve, Gson e Papillon, as únicas participações – mas nunca ocupava sequer o centro do palco, não mais do que um mero recurso na constelação de referências que refletem uma identidade portuguesa desempoeirada e cosmopolita, onde o semba convive com o fado porque “casa é o mundo inteiro”. Não faltam highlights no disco, mas é em “Mun’dança”, faixa que encerra as hostilidades, que encontramos o corolário de tudo isto – qualquer ortodoxia remanente no rap português é definitivamente sacudida quando um dos principais “nome da praça” fecha um álbum em registo afro-house, enquanto repete uma e outra vez um mesmo mantra carregado de espiritualidade.

Slow J não tem par. Notarão que há poucos parágrafos dissemos o mesmo de Gson, mas não há aqui qualquer incoerência. Gson conquistou o topo de uma hierarquia através da fome patente em cada verso, no contexto de um “rap game” com um caráter intrinsecamente competitivo – e nada aí há de errado, é afinal essa a tradição dominante no hip hop. João Coelho, por contraste, não ombreia com ninguém porque joga sozinho: criou o seu campeonato, com as suas próprias regras, e a sua pouca presença mediática deixa transparecer uma aversão a deixar-se moldar por influências que não sejam por si mediadas.

A carreira de Slow J continuaria a prosperar: You Are Forgiven, saído no ano passado, é até um álbum discutivelmente mais consistente, e suspeita-se que muito do que de mais interessante se fizer nos próximos anos continuará a passar-lhe pelas mãos. The Art of Slowing Down, contudo, é um documento exemplar daquilo que mudou nos últimos dez anos.

O mesmo Slow J está na produção executiva do disco que escolhemos para 2018. Deepak Looper, estreia de Papillon em nome próprio, está também por isso estilisticamente alinhado com The Art of Slowing Down – além da presença da guitarra de João Coelho, há a mesma reunião de influências transatlânticas e uma clara afinidade estilística. Papillon é, no entanto, um rapper modelar, forjado no battle rapping que o deu a conhecer ao grande público, com toda a dívida formativa que isso carrega: as punchlines, o wordplay, a técnica, mas também uma expressividade particular. Com um terreno próprio por onde se aventurar, surgia neste primeiro registo a solo a face que uma Liga Knock Out nunca permitiria revelar – a vulnerabilidade, o recontar dos falhanços, das curveballs que a vida lhe atirou. Com os GROGNation, o rapper de Mem Martins encontrara o seu espaço, mas aqui vincava uma identidade própria: os versos não se desviam do cânone do rap português, mas nem por isso soam datados, demonstrando como a herança do boom bap não tinha de ser abnegada no altar do progresso. A renovação, já o perceberamos com Slow J, não exigia necessariamente a afinação pelos ventos que vinham de fora, pelas exigências do mainstream; mas com Papillon ficava claro que era igualmente legítimo procurar essa regeneração na imanência, dentro das coordenadas que o haviam visto crescer.

Já Profjam ensaiava um movimento contrário, afastando-se do boom bap explorado em Mixtakes, e reclamando para si um território estético indiscutivelmente contemporâneo. “Água de Coco”, produzido por Lhast, é o incontestado single de 2018, um showcase de talento e técnica, apontando já à dimensão espiritual que o seu trabalho viria a adquirir. As doze milhões de reproduções com que a música conta são testemunho do seu impacto, e Mário Cotrim afirmava-se como ícone de um movimento que despontava um pouco por todo o país.

É claro que ao arrojo estético, e principalmente ao abraçar de coordenadas mais pop, seguir-se-iam as habituais acusações de traição aos mandamentos de Bambaataa – só que essas vozes soavam agora distantes, cada vez mais deslocadas. O público que Profjam formara era genuinamente transversal, e nas playlists adolescentes a sua música convivia sem qualquer tensão com a de alguém como Papillon – sintomático de uma geração que tem, apesar de tudo, um entendimento muito menos compartimentalizado da música que ouve. Estavam assim lançadas as bases para um novo paradigma, em grande parte conduzido pela visão e pelo sentido de oportunidade do próprio Profjam, e cristalizado na sua Think Music. A label serviu de casa de acolhimento para artistas que dificilmente encaixariam no circuito convencional, e proporcionou ascensões meteóricas – um fenómeno exemplarmente ilustrado por Sippinpurpp, autor de outro forte candidato a single do ano.

A referência ao trapper ovarense obriga a um detour, que é pertinente pela sua captura única do zeitgeist. O sucesso de André Vaz importou questões estéticas que o meme rap há muito levantara noutras longitudes, e deixou a nu um dramático desfazamento geracional – enquanto muitos heads coçavam a cabeça, a lotada plateia do Sudoeste entoava “falam mal de mim porque eu tenho sauce”. O próprio Sippinpurpp – por contraste com a audiência coligatória que Profjam formou – aproveitou a trincheira para a qual foi empurrado e assumiu uma postura deliberadamente confrontacional. Foram várias as vezes em que encarou de frente os trâmites da ortodoxia, “bending the stick” no sentido contrário, de uma forma tão provocatória como emancipatória – no seu mais recente lançamento, por exemplo, atiraria “não sei de quem tu falas, eu não oiço mortos”. Nunca foi esta a postura de Profjam, que se desdobra regularmente em tributos aos nomes canónicos do rap nacional, mas este é um sintoma da mudança de paradigma que permitiria a Mário Cotrim afirmar, já em #FFFFFF, “farto da conversa que mudei, mano, é claro puto, é facto que mudei o game”.

Seria já expectável que #FFFFFF fosse, assim, a nossa escolha para fechar a década, a síntese do percurso percorrido pelo hip hop português nos últimos dez anos, que afirma um novo momento sem esquecer que nasce da imanência do passado.

As onze faixas que compõem o álbum são, antes de mais, canções sólidas. Com a produção quase inteiramente entregue a Lhast (a exceção é “O Hino”, que sai das mãos de Holly), o arquétipo “trinta-e-duas-barras-entrecortadas-por-um-refrão” é definitivamente deixado para trás, e as aventuras começam no plano da própria forma. Esse experimentalismo, contudo, existe em tensão com uma marcada dívida pop, uma inspiração no trap chart-topper, que bebe igualmente de influências latinas e da Lisboa africana. A fórmula ganhadora não seria possível sem a inclusão de Lhast: o produtor, outrora conhecido como Lhast Hope, é um nome cada vez mais incontornável, que ao génio e destreza técnica alia uma louvável capacidade de evitar excessos virtuosos. É aí, nesse espaço negativo, que Profjam se afirma como um talento destacado, tecnicamente ao nível do que melhor se faz em Portugal, juntando à métrica e ao wordplay uma aptidão única para entrar em qualquer batida, equilibrando wittiness e espiritualidade, e explorando registos cantados sem abandonar uma identidade forjada no hip hop. As suas canções são de celebração, de um ego-trippin’ justificado por um sucesso que premeia realmente o trabalho, mas o mérito de #FFFFFF passa também por ser um documento de vulnerabilidade: na sua dimensão mais introspetiva, o álbum conta a história de uma geração forçada a entrar na vida adulta na ressaca da crise e a consequente falta de oportunidades, de uma existência atomizada, apática, da falta de autoestima e da desresponsabilização crónica. Parte do apelo do rapper de Telheiras é ser capaz de aí encontrar silver linings, de oferecer aos seus ouvintes uma panaceia, muito pela descoberta espiritual.

O tecto do talento de Profjam não é ainda claro, mas o seu disco de estreia é o corolário da década que passou – e não apenas no plano artístico. A história da sua ascensão não pode ignorar o lado business savvy de Mário Cotrim, que construiu uma equipa profissional ainda como artista independente, o que lhe permitiu ligar-se às majors sempre nos seus próprios termos. Se nos últimos anos assistimos a uma crescente “profissionalização” do rap português, o papel das editoras major – e, em especial, da Sony – não é uma nota de rodapé. A editora assumiu um papel hegemónico, trabalhando com os principais atores do meio, desde a SUPERBAD à Bridgetown, e a chave do sucesso parece estar na fórmula que adotou com Profjam: uma abordagem assente no respeito pela individualidade dos artistas, em contraste com um longo historial de grandes editoras que optavam regularmente pela imposição de estratégias formulaicas, responsáveis por esquartejarem umas quantas carreiras no processo. Essa mudança de estratégia é também evidente na atenção ao talento emergente; aí, não haverá caso mais emblemático do que o de Julinho KSD, a quem a mesma Sony pôs um contrato à frente depois de dois êxitos virais.

Um desses singles é “Sentimento Safari”, a nossa música do ano, que encerra esta retrospetiva. Se Profjam coroava uma longa marcha, Julinho abre uma fresta e dá-nos uma ideia do que a próxima década nos poderá trazer. Vindo de Mem Martins, o rapaz de sorriso fácil é um caso de estudo, com uma ascensão estratosférica que se seguiu imediatamente ao primeiro vislumbre de talento; e é, talvez mais do que qualquer outro nome nesta lista, alguém que seria recebido com franca sobranceria dez anos atrás. A sua música não passa nenhum purity test: o seu rap convoca música africana tão depressa como pisca o olho ao drill, e o seu sucesso deixa até antecipar um takeover da abordagem afro que já se vem adivinhando. Os mesmos ritmos outrora postulados como a antítese do hip hop – associados a pretensos pecados festivos, que entravam em rota de colisão com a seriedade com o que o público do rap se levava a si mesmo – são agora abraçados, no momento de emancipação daquilo a que António Brito Guterres chamou de “cidade invisível”: a atividade cultural da Lisboa periférica, que encontrou os seus próprios canais e criou uma vibrante economia própria, sob o manifesto desinteresse dos suplementos culturais. E não é acidental que seja Julinho essa figura emancipatória. Ele é a máxima despretensão, um rapper tecnicamente competente mas cuja música é, em última análise, de vibe. Recusa-se qualquer dicotomia entre forma e conteúdo, porque o conteúdo de Julinho não é isolável da forma – basta pensar na felicidade infecciosa transmitida pela sua delivery e carisma, que está para lá do que é proposicionalmente explicável. Os seus versos não se abstraem do plano social – um refrão com repetidos “fuck the police” deixa-o bem explícito – mas as suas canções não são redutíveis a uma pretensa mensagem. E não é, afinal, isso mesmo que devemos esperar da música: um meio de transmitir algo irredutível às palavras, que não possa ser convertido num simples manifesto, que aponte a um plano mais elevado e que nos mova, sem que compreendamos bem porquê? Demorámos bem mais do que uma década, mas parecemos ter finalmente lá chegado.

Uma retrospetiva não ficaria completa sem uma tentativa de divinação do futuro, que sabemos à partida condenada – daqui por dez anos, a manter-se a vitalidade presente do rap nacional, o cenário será ainda mais inescrutável do que para quem, em 2010, tentasse perceber o sucesso de um Sippinpurpp. É possível, no entanto, partindo das coordenadas do presente, tactear o que os próximos anos nos podem trazer.

Olhemos para Plutónio, que se perfila como principal candidato a figura de 2020. O luso-moçambicano é hoje o rapper mais vendido e ouvido em Portugal, e a sua explosão silenciosa é sintomática das dificuldades em antecipar os ventos do sucesso. Com ascensões igualmente meteóricas, ainda que por enquanto menos estabelecidos, merecem também menção nomes como Yuri NR5 e Toy Toy T-Rex, e as teenagers Cíntia e Nenny. A “filha dos filhos do Rossi”, de resto, podia bem ter sido a nossa figura de 2019 – “Sushi” é um dos mais marcantes cartões de visita da história do rap português –, e juntamente com Cíntia representa a emergência definitiva desse talento feminino e periférico que, queixávamo-nos no balanço de 2012, se encontrava bloqueado. Também o rap crioulo – que em “Pela Música Pt. II” Sam the Kid lamentava “ainda não te[r] edição numa major” – encontrou em Julinho, mas também em nomes como Apollo G, Vado MKA ou Minguito, a projeção mediática que há muito lhe era devida.

Por trás de muitos destes nomes está também uma produção executiva que é reveladora da crescente profissionalização do meio – e se já abordámos o talento de Here’s Johnny e Lhast, é Charlie Beats quem parece ter aqui conquistado uma posição verdadeiro hegemónica. O produtor tem dedo num impressionante volume de lançamentos recentes, e pela sua mesa de mistura devem continuar a passar muitos dos discos mais relevantes dos próximos anos – Rui Miguel Abreu descreveu-o apropriadamente como herdeiro da dinastia de “Hugo Ribeiro, José Fortes, Tó Pinheiro da Silva ou (…) Nelson de Carvalho”.

Por fim, no meio deste panorama auspicioso, volta a abrir-se o caminho para o regresso de figuras clássicas. Regula, claro, e principalmente Sam the Kid, serão os nomes mais antecipados, mas há todo um universo de potenciais retornos pródigos que se podem dar agora em condições muito mais saudáveis. Afastada uma cultura monolítica, e consequentemente o espetro da nostalgia e o peso das expectativas, as figuras de proa de outros tempos têm caminho aberto para se reinventarem sem que para isso tenham de comprometer a sua identidade. O mesmo público que ditou as transformações da última década estará, na sua heterogeneidade, pronto a recebê-los de braços abertos.

Fotografias: Keso – André Henriques; Capicua – André Tentugal; Nerve – Chikolaev; Wet Bed Gang – Ana Ortega; Profjam – Sara Falcão; Plutónio – Pluma