Tudo indica que as próximas semanas de todos nós sejam passadas em casa.
As circunstâncias não são as ideais, mas não deixa de ser uma oportunidade para meter a leitura em dia, aprofundar conhecimentos em alguma matéria, ou simplesmente varrer temporadas daquelas séries que estavam na lista de espera. No espírito da iniciativa #StayTheFuckHome, vamos fazer uma série de artigos com listas de recomendações curadas pela nossa equipa, para que o período em casa seja o mais confortável e interessante quanto possível.
A terceira lista desta série é dedicada aos que filmes que fizeram da moda, da música e da cultura urbana aquilo que são hoje. Uns são clássicos de culto, outros abriram caminhos para que mais obras pudessem ser criadas e também estão presentes alguns que marcaram gerações. Vários filmes desta lista podem ser complicados de encontrar, mas a caça valerá a pena.
Wild Style (1983)
Esta lista não poderia começar de outra forma. Wild Style foi o ponto de partida e a primeira vez que a palavra Hip Hop virou objeto de atenção do cinema. Ainda longe das grandes somas que o género viria a movimentar, este filme de baixo orçamento é um relato fidedigno da génese do movimento Hip Hop e da forma como se desenvolveu durante os anos 80 no Bronx, ainda enquanto “cultura dos 4 elementos” – onde as vertentes rap, dj’ing, graffiti e breakdance aparecem todas devidamente representadas. Ao lado de filmes como Beat Street e Electric Boogaloo pautou o rumo do género durante anos e ofereceu um guião que milhares de jovens por todo o mundo seguiram religiosamente.
Scarface (1983)
Não é exagero dizer que Scarface é a origem do imaginário glorificado do drug lord. A história do hustler que começa do ponto mais baixo possível, sobe a pulso na hierarquia até chegar ao topo da cadeia, e se torna no barão opulento, tem sido objeto de inspiração nos últimos 37 anos.
O paralelismo com as histórias contadas por muitos artistas de rap não é coincidência. Uma pesquisa no Genius pelos termos “Scarface” ou “Tony Montana” devolve milhares de resultados. Kool G Rap, Kanye West, Nas, Jay-Z, Raekwon, Mobb Deep, A$AP Rocky, Pusha T, Biggie, J. Cole, Future ou Meek Mill fazem parte da lista gigante de nomes que mencionaram a personagem interpretada por Al Pacino de alguma forma nas suas letras. O título do filme foi adotado como nome por um dos membros dos Geto Boys, e são incontáveis as vezes que algum diálogo ou pedaço do filme acaba a ser usado como sample. Até em Portugal, Halloween aproveitou um dos icónicos discursos de Tony Montana para o seu tema “Fuck Y’all Yo”.
Como seria de esperar, essa influência também se faz sentir na moda. Supreme, Magic Stick ou VLONE são apenas algumas das marcas que se inspiraram no filme de Brian de Palma para coleções e peças roupa.
Do The Right Thing (1989)
Em 1989, Spike Lee decide ir contra todos os parâmetros impostos por Hollywood e apresenta o controverso Do The Right Thing, no momento que marcou a sua mudança de “black Woody Allen” para voz polarizante em temas raciais.
A receita é simples: no “dia mais quente de verão” em Brooklyn, uma série de incidentes em cadeia faz subir a tensão entre os residentes numa rua em Bedford-Stuyvesant, e culmina numa cena brutal de violência policial. O tema é terrivelmente familiar e tragicamente atual, ao ponto de que se poderia tratar do enredo de um dos muitos registos de brutalidade policial que chegam dos Estados Unidos. Do The Right Thing abriu a caixa de pandora para a discussão em praça pública dos temas da violência policial e tensão racial.
Em termos estéticos também se tornou num marco, desde a escolha de roupa afrocêntrica presente no filme que foi proeminente nos EUA até meados da década de 1990; até detalhes como as camisolas de baseballl e basket usadas por Mookie (representado por Spike Lee) ou os anéis de junta LOVE/HATE de Radio Raheem.
Do The Right Thing oferece ainda um dos momentos mais icónicos de sapatilhas no cinema, quando as Nike Air Jordan 4 “White Cement” de Buggin’ Out são pisadas por um ciclista branco, levando a uma discussão sobre a gentrificação de Nova Iorque. A Jordan lançaria em 2017 uma versão especial do modelo, com o raspão, o laço extra com que a personagem interpretada por Giancarlo Esposito decorou a sapatilha, e uma escova de dentes como a usada no filme para as limpar.
King of New York (1990)
Lançado em 1990, o filme de Abel Ferrara vê Christopher Walken a interpretar Frank White, o epónimo “King of New York”, drug lord em torno do qual gira toda a narrativa. No entanto, o filme passou de forma indiferente pela crítica, e foi a comunidade hip hop a elevá-lo ao estatuto de clássico de culto.
Biggie, que adotou mesmo o a.k.a. de “Black Frank White”, colocava-o a par de Scarface no “hall of fame” de filmes de gangsters, e é fácil perceber porquê: a personagem de White encapsula em si as mesmas contradições do gangsta rap, uma dimensão Robin Hoodesca em que uma vida de crime convive com um desejo filantrópico de ajudar a comunidade. Há, além disso, um retrato de forças policiais corruptas, uma banda sonora impecável, e um guarda-roupa que nos remete para a Nova Iorque de há umas décadas.
Se dúvidas houvesse da relevância do filme nos dias de hoje, a Supreme dissipou-as em 2019, imortalizando a personagem de Walken numa t-shirt.
Boyz N The Hood (1991)
Visto por muitos como o mais conseguido retrato da realidade dos bairros estadounidenses, Boyz N The Hood tornou-se um clássico imediato, com direito a nomeação para os Oscars. O filme, realizado por John Singleton – o mais jovem realizador, e o primeiro afro-americano, a conseguir uma nomeação da Academia -, é um herdeiro do caminho aberto por Spike Lee, e tem em Ice Cube um dos primeiros exemplos de rappers a assumirem o protagonismo no grande écrã.
Enquanto retrato do ghetto de Los Angeles, a ligação umbilical ao hip hop da costa oeste seria sempre inevitável. A banda sonora que inclui faixas do próprio Ice Cube e de outros nomes incontornáveis, como Too Short, Quincy Jones, Compton’s Most Wanted, e a canção que dá nome ao filme, o célebre single de Eazy-E “The Boyz-N-The-Hood”.
Juice (1992)
Na esteira de Do The Right Thing, o hip hop ganhou o seu espaço no cinema comercial ao longo da década de 90. Em 1992, Ernest Dickerson, que trabalhara no filme de Spike Lee, estreou-se na realização em nome próprio com Juice.
O filme é um conto moralista sobre quatro adolescentes no Harlem, sob uma estética “noir”: as personagens vão-se envolvendo num ciclo de ação que vai da inocência até à morte prematura de Bishop, que ganha contornos proféticos quando pensamos que a personagem é interpretada por Tupac.
O filme envelheceu bem, assumindo um lugar ao lado de Boyz N The Hood na sua capacidade de encapsular uma era e uma estética que moldaram definitivamente o hip hop.
Poetic Justice (1993)
Um filme também assinado por Singleton, Poetic Justice surge dois anos depois de Boyz N The Hood, como um dos primeiros hood romances do cinema americano.
Protagonizado por Janet Jackson e Tupac Shakur, que conquistava cada vez mais o seu legítimo espaço como ator, a banda sonora inclui músicas originais da própria parelha romântica, com a canção “Again” de Janet Jackson a merecer mesmo uma nomeação para os Oscars. Marcam ainda presença nomes como Warren G, Nate Dogg, Naughty by Nature, e Usher, contribuindo para uma estética indelevelmente hip hop.
O impacto do filme perdura, como bem demonstrou Kendrick Lamar em “Poetic Justice”, hit com a colaboração de Drake, construído sobre um sample de “Any Time, Any Place” de Janet Jackson.
Pulp Fiction (1994)
É um dos filmes nesta lista que poderia dispensar apresentações. Apesar de lançado em 1994, Pulp Fiction envelheceu bem e consolidou um lugar hegemónico no nosso universo cultural – não será hoje surpreendente encontrar o poster do filme nas paredes do quarto de um adolescente.
Em poucos territórios ter-se-á essa influência feito notar como no do hip hop. Se estiverem a ver o filme pela primeira vez, e ao seguirem a história de Vincent Vega e Jules Winnfield, são bem capazes de reconhecer o verso “bíblico” citado pela personagem de Samuel L. Jackson, que foi samplado incontáveis vezes, de Ariana Grande a Snoop Dogg ou aos Cypress Hill. A isto somam-se ainda as referências em versos, pela caneta de Jay-Z, Fat Joe, Tech N9ne, Common, Mobb Deep, ou LL Cool J; e, naturalmente, o impacto no universo da streetwear: ainda no ano passado a HUF assinalou o 25º aniversário do filme com uma coleção colaborativa.
A título de curiosidade, até um outro filme nesta lista, Space Jam, contém um breve piscar de olho ao clássico de Tarantino.
La Haine (1995)
Se Do The Right Thing ilustra os problemas com a polícia nos EUA, La Haine retrata a realidade europeia – em particular a francesa – com uma precisão assustadora. O clássico de Mathieu Kassovitz abre com imagens de motins nos arredores de Paris, na sequência da detenção violenta e hospitalização de um jovem árabe, e acompanha as 20 horas seguintes da vida de três dos seus amigos, todos eles imigrantes de diferentes origens.
É um filme definidor para a streetwear europeia. O styling, à base de Lacoste, Carhartt, Nike, Everlast, Reebok, Sergio Tacchini e Fila, não destoaria nada nos dias de hoje; e a atenção à indumentária reflete-se até na caraterização de cada personagem.
Além disso, La Haine teve também um papel no breakthrough do rap em França, catapultando o género musical para um mainstream onde se mantém até hoje, e concendendo-lhe uma visibilidade à época sem par na Europa. Que o digam nomes como Suprême NTM, IAM, MC Solaar e Cut Killer – este último surge em câmara a misturar samples dos NTM e de Edith Piaf sobre o beat de “Sound of da Police”, de KRS-One, numa cena que encapsula uma juventude híbrida, a tentar conciliar as identidades de onde vem, de onde está, e para onde quer ir.
O filme viria ainda a servir de inspiração para “Money Man”, curta produzida em 2016 pela AWGE no âmbito das Cozy Tapes Vol. 1 da A$AP Mob, contando inclusive com a participação do ator Saïd Taghmaoui – também Saïd em La Haine – para além de nomes como A$AP Nast ou Skepta.
Friday (1995)
Escrito e protagonizado pelo próprio Ice Cube, Friday é um filme com uma premissa simples: dois jovens desempregados de Compton têm até às 22 horas de sexta-feira para pagar duzentos dólares ao dealer local. Segue-se o inacreditável desenrolar de acontecimentos que leva a parelha de Ice Cube e Chris Tucker numa aventura pelo bairro, com as peripécias e as personagens que definiriam todo o género de stoner movie.
O sucesso de Friday tornou-o uma comédia incontornável, e garantiu-lhe duas sequelas, mais uma terceira a caminho e agendada para 2021; além disso, abriu caminho para uma série de filmes na mesma linha, o mais célebre talvez How High, com Method Man e Redman.
Kids (1995)
Em 1995, quem entrasse no cinema para ver um filme de adolescentes, esperaria uma comédia leve – o próprio nome, Kids, era pensado para o efeito. Só que o que aguardava o espectador mais incauto era um autêntico murro no estômago, a história de 24 horas na vida de um grupo de adolescentes novaiorquinos, interpretados por atores amadores, movendo-se entre álcool e drogas, violência sexual e STD’s, naquilo que o New York Times celebremente descreveu como “O Deus das Moscas, mas com skates, óxido nitroso e hip hop”.
Seguiu-se uma boa dose de controvérsia, e uma ambígua receção crítica, mas com o passar dos anos o filme tornou-se um documento de culto. Em 2010, Mac Miller batizaria uma mixtape de “K.I.D.S.”, numa declarada homenagem que incluía a samples de diálogos do filme de Larry Clark. Cinco anos volvidos, a Supreme imortalizaria algumas das cenas mais memoráveis em t-shirts – um tributo apropriado, dado que o realizador costumava passar horas na loja de streetwear à procura de figurantes para o filme.
Space Jam (1996)
Space Jam é responsável pela obsessão de toda uma geração com Michael Jordan.
O filme vê Jordan sair da reforma para ajudar Bugs Bunny e companhia, que disputam a liberdade das personagens de Looney Tunes num jogo de basket contra os Monstars – uma equipa de aliens com talento roubado a figuras da NBA como Larry Johnson, Charles Barkley e Patrick Ewing.
O impacto no mundo das sapatilhas é evidente: o legado deixado na marca do Jumpman por Space Jam vai desde as próprias Air Jordan XI que Mike usa no filme a modelos nelas inspirado – até personagens como Bugs Bunny acabaram por servir de inspiração para sapatilhas.
Curiosamente, e se hoje a esmagadora maioria dos lançamentos de Nike Air Jordan são ao sábado, também isso se deve ao filme. As Air Jordan XI calçadas por Michael Jordan no jogo contra os Monstars saíram inicialmente ao público no dia 13 de dezembro de 2000 – uma quarta-feira – levando a que imensos miúdos faltassem à escola para comprar o antecipado modelo. Depois de muitas queixas de pais, os lançamentos da marca passaram a ser aos sábados.
O single da banda sonora de Space Jam merece também uma menção. A “Hit Em High (The Monstars Anthem)” recebeu um elenco de luxo para a época, juntando na mesma música B-Real, Coolio, Method Man, LL Cool J e Busta Rhymes.
Belly (1998)
Em “Be Careful”, um dos pontos altos do seu mais recente álbum, Cardi B desabafa sobre a relação com Offset. Conta-nos que ambiciona a uma vida familiar idílica, à imagem de Stephen e Ayesha Curry, mas que “we more like Belly, Tommy and Keisha shit”. A referência terá passado despercebida a muitos – Belly é um filme com mais de duas décadas, e um completo falhanço comercial, destruído pela crítica. Mas é também uma peça não-menosprezável na história do hip hop.
O Tommy em questão é interpretado por DMX, que partilha a spotlight com Nas, numa época em que ambos estavam longe do estatuto que viriam a adquirir. A parelha acaba embrenhada num conjunto de pouca sorte e más decisões, mergulhando num percurso halucinatório que parte de Queens, em Nova Iorque, e vai desde Atlanta à Jamaica – cada cenário capturado com impressionante autenticidade.
A verdade é que se Belly falha, é por excesso de ambição – Hype Williams, que se estreia na realização é um visionário, e por vezes voa demasiado perto do sol. Isso não apaga os méritos de um filme que conjuga documentário da street culture novaiorquina com incursões surrealistas. É, além disso, um filme hip hop da cabeça aos pés, desde o elenco à banda sonora, e abriu caminho para outros filmes que poderiam figurar nesta lista, como Paid in Full.
Zona J (1998)
O filme de Leonel Vieira é um clássico incontornável, que importava para o cenário português – em particular para a Zona J, em Chelas, “pior zona do pior país da CEE” – um conjunto de tropes populares no cinema: o grupo de amigos periféricos, o amor interracial, o confronto com a opressão estrutural que convida ao crime. Mas Zona J é também, e apesar de datado, um documento subtil e cuidado, que abriu portas para a representação de minorias racializadas nos meios culturais, e que trata as subjetividades que retrata com respeito e justificada complexidade – o emprego de atores locais e amadores é significativo.
Dado o tema, o hip hop atravessa naturalmente o filme – é uma das primeiras representações da cultura no cinema português, a par de Corte de Cabelo. A banda sonora conta com nomes como Boss AC, Mind da Gap, e Black Company; e há ainda um NGA de 15 anos a interpretar Pikapau.
O filme foi premiado com dois Globos de Ouro, em 1999, sintomáticos do seu sucesso comercial, mas o seu legado é difícil de medir, abrindo o caminho para produções posteriores como O Crime do Padre Amaro.
Ghost Dog: The Way of the Samurai (1999)
Jim Jarmusch é um nome gigante do cinema independente, mas não é a presença mais óbvia nesta lista. Ou não seria, não fosse a sua igualmente improvável amizade com RZA.
Ghost Dog é uma obra inspirada, que combina o filme de mafioso com o épico de samurais, numa produtiva mistura pós-moderna. O seu subtítulo, “O Caminho do Samurai”, refere-se a um milenar código dos guerreiros japoneses, cujas passagens vão preenchendo os interstícios do filme e que guiam a vida do Ghost Dog. A personagem principal, interpretada por Forest Whitaker, é um samurai autodidata, que vive num rooftop onde cria pombas, e que usa para comunicar com um líder da mafia para o qual trabalha como assassino contratado.
Se isto não chega para vos despertar a curiosidade, saibam que é apenas metade do apelo. O filme é, pelo menos em igual parte, carregado por RZA. A força criativa de Wu-Tang não só se estreia a representar, como ainda assina uma banda sonora que complementa na perfeição o estilo onírico e retalhado de Jarmusch – não fosse RZA um embaixador do sampling.
O filme vale por si: é um documento de cinematografia poética, em que a brutalidade convive com o humor e com momentos de beleza genuína. Mas é também essencial para compreender a estética Wu-Tang, e o seu papel a abrir caminho para filmes e séries como Afro Samurai ou The Man With the Iron Fists.
Cidade de Deus (2002)
O filme de 2002, adaptação de um romance de Paulo Lins, é um bildungsroman periférico. A narrativa acompanha o crescimento das neofavelas cariocas a partir da história de Buscapé, um miúdo inocente que alimenta o sonho de ser fotógrafo no meio de um ambiente de infernal brutalidade, e o seu contraste com Dadinho, produto da mesma geração, um traficante sem escrúpulos – entretanto rebatizado de Zé Pequeno, numa das cenas mais célebres do cinema brasileiro. A lente da máquina de Buscapé acaba a registar uma guerra sem fim aparente na sua favela, servindo na história o mesmo propósito que o filme preencheu na sociedade brasileira: revelando o abismo social que separava a classe média da realidade da pobreza extrema.
É fácil compreender o fascínio do hip hop com Cidade de Deus. O filme nunca cai em moralismos fáceis, pintando o caráter Robin Hood-esco dos traficantes, que preenchem as funções em que o estado falhou. É também um sucesso visual – 2 Chainz e Young Thug reutilizaram imagens do filme -, e as interpretações são inacreditavelmente carismáticas. Nem o rap português fica indiferente: em “Cala a Boca”, Holly Hood pergunta “quem falou que a boca era tua?”.
8 Mile (2002)
Em 2004, um jovem Sam The Kid rimava “o meu Beat é Street, o meu Style é Wild / tu só começaste a dar freestyle depois de ver o 8 Mile”. Ao comparar o filme de Curtis Hanson com duas das mais importantes representações da cultura Hip Hop no cinema, Samuel Mira deixava claro o seu impacto, e a vaga de adeptos do género que consigo arrastaria. Se à época isso causava compreensível apreensão, 18 anos volvidos é inegável a importância do filme “semi-biográfico” de Eminem para o crescimento do rap enquanto música.
Ora, falar da importância de 8 Mile é também falar da importância de Marshall Mathers. O rapper de Detroit chega ao grande ecrã pouco depois de ter deixado a sociedade americana em alvoroço com “The Eminem Show”, colecionando polémicas e controvérsias. O filme era a sua consagração até nos setores mais céticos, coroado com um Oscar de melhor canção original para “Lose Yourself” – o primeiro rapper a conseguir tal galardão -, numa cerimónia onde nem viria a comparecer, tal a incredulidade com que recebera a nomeação.
O fenómeno Eminem foi o grande responsável pela globalização, multiculturalização e generalização do rap, reunindo as condições para que hoje seja a norma nos tops musicais mundo fora. O rapper, para o bem ou para o mal, levou o género além das comunidades afroamericanas, pavimentando o caminho para que o hip hop e seus derivados pudessem proliferar em ambientes muito longínquos daqueles a que estava habituado.
Além disso, 8 Mile virou ainda os holofotes para o circuito underground do battle rap, abrindo as portas para que mais tarde competições como Grind Time, King of the Dot, Don’t Flop, e até a portuguesa Liga Knockout, pudessem ganhar mediatismo e adeptos.
Bullet Boy (2004)
Antes do grime dominar as charts globais, havia Bullet Boy. A premissa do filme, lançado em 2004, é familiar: conta-nos a história de dois irmãos negros a crescerem num estate em Clapton, Hackney, à época conhecida como a “murder mile”; há uma mãe solteira e incidentes com armas, e uma narrativa sobre tentativas de resistência a um destino que parece traçado. Porquê, então, incluir este filme?A história pode parecer-nos familiar, mais de quinze anos volvidos, mas este é um dos primeiros retratos contemporâneos da “black Britain”. Bullet Boy foi o precursor de tudo o que se seguiria na década seguinte, abrindo o caminho para uma série como Top Boy – Ashley Walters, que reconhecerão como Dushane, tinha aqui o seu “breakout role” – e para toda a estética do roadman londrino que teria a sua conclusão inevitável na apropriação de Drake. É, além disso, um retrato cuidado e subtil das existências periféricas numa Londres pré-gentrificação.
The Fast And The Furious: Tokyo Drift (2006)
O franchise Fast and Furious, um dos maiores sucessos comerciais na história do cinema americano, sempre teve uma íntima ligação à cultura urbana – desde o roteiro, aos visuais, passando pelas bandas sonoras e pelo casting de atores, que sempre procurou incorporar rappers e cantores de R&B entre os papéis principais do elenco. Foi assim com Ludacris, com Tyrese, até mais conhecido pelos seus dotes de representação do que como músico, além de tantas outras aparições esporádicas, como Don Omar, Ja Rule, Jin, Iggy Azalea e Rita Ora.
Tokyo Drift, o terceiro filme da saga, leva o protagonista Sean Boswell à capital japonesa, para fugir a sarilhos nos Estados Unidos. Recém-chegado a Tóquio, Sean conhece o compatriota Twinkie, interpretado por Bow Wow, que lhe mostra a cidade e o introduz ao mundo underground do street racing japonês. Daqui emerge um documento da estética e da cultura jovem de Tóquio, por vezes única e noutras combinando diversas inspirações – é inegável a influência do hip hop e da cena americana, principalmente nos early noughties, representada no filme pelo sucesso de Twinkie a vender produtos ocidentais, de Jordans a Nike Dunks, iPods e até Snickers, cobiçadíssimos pela clientela local.
O filme inclui ainda uma banda sonora de luxo, que se tornou mítica, com hits dos Teriyaki Boyz, Pharrell Williams, N.E.R.D., Atari Teenage Riot, entre muitos outros. O single “Tokyo Drift”, dos Teryaki Boyz, conta ainda com uma participação de Nigo, fundador da BAPE e da Human Made.
Uncut Gems (2019)
Depois de tantos clássicos, esta escolha será de estranhar. O filme dos irmãos Safdie saiu há poucos meses, e se algumas das nossas sugestões vos poderão obrigar a escavar a internet, Uncut Gems está disponível no Netflix. Porquê, então, encerrar a lista com um filme cujo impacto ainda não pode ser medido? É – apropriadamente, dado o tema do filme – uma aposta. Vemos aqui reunidos todos os ingredientes para um filme de culto, que motivará referências de rappers e entrará no nosso imaginário coletivo, como um Scarface ou um King of New York para a Geração Z.
A história acompanha Howard Ratner, um dealer de joalharia, ao longo de uma semana da sua vida. Pouco recomendado para quem sofra de hipertensão, o filme testemunha a personagem tremendamente interpretada por Adam Sandler a fazer negócios com o basquetebolista Kevin Garnett, a andar ao soco com The Weeknd, e a sucumbir constantemente ao vício das apostas enquanto foge do seu cunhado a quem deve uma pequena fortuna. É uma receita para o sucesso: as personagens são fascinantes, atravessadas por contradições, num filme que tem uma estética vincadamente hip hop, desde todo o universo paradigmaticamente novaiorquino aos outfits de Lakeith Stanfield. Um clássico imediato.